O que um dia foi a primeira grande coleção de carros antigos no Brasil tornou-se um sombrio cemitério de automóveis.Um dos 50 Tucker produzidos no mundo está escondido num canto escuro. Sem o motor, o painel original e o característico farol central dianteiro, que se movimentava na mesma direção do volante.
Em bom estado de conservação, um modelo desses pode valer meio milhão de dólares nos Estados Unidos. Mais adiante, outra pérola, em estado precário: um Packard 1939, modelo "One-Twenty". Grossas camadas de poeira cobrem o carro que um dia carregou o príncipe Phillip na passagem do membro da família real inglesa por São Paulo em 1968. Noutro canto, há um Cadillac Coupé 1950 cuja direção foi roubada.
O mesmo aconteceu com rodas, emblemas de radiador e até bancos inteiros de outros modelos raros. Esse cenário faz parte de uma história digna dos textos do escritor Nelson Rodrigues. Envolve um crime passional que causou comoção em São Paulo nos anos 70 e uma briga entre membros de uma das famílias mais tradicionais da cidade. Condenada pelas circunstâncias, a frota de 26 preciosidades cumpre pena num galpão de 850 metros quadrados, na cidade de Caçapava, em São Paulo.
Lá funcionou entre 1963 e 1992 o Museu Paulista de Antiguidades Mecânicas, espaço que em seus tempos áureos atraía gente de todo o Brasil para ver de perto carros antigos tão bem conservados que pareciam recém-saídos da fábrica. Hoje, o lugar não tem luz, seu teto está caindo aos pedaços e o mato cobre a entrada. Estão guardadas no galpão verdadeiras maravilhas. Numa avaliação conservadora realizada com ajuda do colecionador Sérgio Ribeiro, encontram-se por ali cerca de 250 000 dólares em veículos antigos, um patrimônio que agora pode ressuscitar. Um projeto de lei enviado à Câmara Municipal de Caçapava prevê que o acervo passe às mãos da prefeitura local, que se encarregaria de recuperar os carros e reabrir o espaço.
té o fim de agosto a idéia ainda não havia sido apreciada pelos vereadores. Se aprovada, ela vai ajudar a recuperar parte da fabulosa obra de Roberto Lee, o fundador do museu. O péssimo estado dos carros não representa uma missão impossível para os especialistas. "Os carros estão em bom estado, considerando o tempo que ficaram abandonados", afirma Eduardo Lambiasi, da R&E Restaurações, oficina paulista das mais respeitadas no país nessa área. Roberto Lee começou a colecionar carros antigos com a aquisição de um Fiat 1926. Tempos depois, numa garagem do bairro de Pinheiros, em São Paulo, encontrou um Hispano-Suiza 1911. Restaurado, ele se tornou uma das principais atrações de sua coleção.
Assim que farejava boas oportunidades, largava os negócios e saía à caça. Chegava a passar temporadas rodando o Brasil em busca de modelos. "Ele se tornou o primeiro no país a cultivar a imagem dos automóveis antigos", afirma o piloto Bird Clemente. Herdeiro de uma das famílias quatrocentonas de São Paulo, Lee mantinha um escritório de fusões de empresas e circulava pelas altas rodas da sociedade. Vivia cuidando da coleção de carros em Caçapava e, muitas vezes, saía direto de lá para jantar no restaurante do hotel Hilton, um dos mais elegantes de São Paulo à época, vestindo calça jeans e botas sujas de terra. A morte do colecionador, ocorrida na tarde de 16 de junho de 1975, rendeu meses de manchetes em jornais e revistas. Lee estava em seu escritório quando levou dois tiros de um Colt 32, disparados por sua amante, Elza Leoneti do Amaral. Ela contou à polícia que havia matado Roberto porque ele não queria assumir Andréia Cristina, sua filha de 1 ano. Ela seria fruto do romance entre os dois, iniciado por causa de um Cadillac preto, modelo Fleetwood, de 1954.
Ele adicionou o carro ao acervo do Museu de Caçapava em abril de 1973 e encantou-se com a loira que lhe vendeu o automóvel. O Cadillac havia pertencido ao primeiro marido de Elza, o empresário Anésio Augusto do Amaral Filho, que também morreu em circunstâncias trágicas. Seu corpo foi encontrado num dos aposentos da residência do casal, com uma bala na cabeça, em outubro de 1966. Nas mãos de Anésio estava o mesmo Colt 32 usado por Elza para matar Roberto Lee. A coincidência foi explorada pelos jornais de época, que tratavam a mulher como "a loira assassina" nas manchetes.
Ela foi condenada a oito anos de prisão pelo assassinato de Roberto Lee. O caso chamou atenção também por envolver sobrenomes graúdos da sociedade. Do patrimônio do pai de Roberto, o industrial Fernando Eduardo Lee, ganhou fama uma ilha no litoral paulista, pioneira no país na utilização de energia eólica e solar. Além de nascer em berço de ouro, Roberto casou-se em 1960 com Maria Pia Matarazzo, filha caçula do italiano Francisco Matarazzo, que construiu em São Paulo um dos maiores impérios industriais do país no começo do século passado.
Em valores atualizados, o Conde Matarazzo, como era conhecido, amealhou um patrimônio de 20 bilhões de dólares - o que o colocaria hoje na sexta posição da lista dos homens mais ricos do mundo da revista Forbes. Roberto e Maria Pia tiveram uma filha, Mariângela, mas o casamento durou pouco. Quando foi assassinado, o colecionador estava morando com sua segunda mulher, Yara Siqueira. Daí seu constrangimento em reconhecer na época uma filha com Elza Leoneti. O Museu fechou após a morte de Lee em função de uma briga familiar.
O pai do colecionador, Fernando, desentendeu-se com a neta Mariângela quando ela começou a vender parte da coleção do pai. Modelos como o Hispano-Suiza foram arrematados por aficionados do exterior. Mariângela dividiu o dinheiro com a outra herdeira, Andréia Cristina, que acabou sendo reconhecida como filha legítima de Roberto depois do assassinato. Em sua época áurea, o museu tinha cerca de 60 carros expostos. Depois do assassinato, alguns foram devolvidos aos antigos donos. Cerca de 20 modelos que estavam em nome de Roberto Lee entraram no espólio e acabaram negociados por Mariângela. Ficaram de fora da partilha os 26 carros que não estavam em nome do colecionador.
São os que permanecem até hoje em Caçapava. Num texto distribuído aos visitantes da coleção, Roberto comparava sua paixão pelas antiguidades a um vírus. "Uma vez inoculado o micróbio, adquirimos uma moléstia incurável e o resultado geralmente são mãos sujas, roupas rasgadas, garagem atulhada de cacarecos", escreveu ele. Lee passava finais de semana separando peças antigas e restaurando com as próprias mãos os modelos. Ele construiu uma rede de informantes, que o avisavam quando viam algum automóvel interessante.
Metódico, anotava em fichários as principais informações dos modelos, junto com um dossiê fotográfico sobre as condições dos modelos. Muitas vezes, enviava um "laranja" para iniciar as negociações. O advogado José Nestor Hopf executou esse papel no início dos anos 70. Ele também costumava viajar com Lee para garimpar as preciosidades fora do estado de São Paulo. A atividade tinha sempre um sabor de aventura. Uma das primeiras jornadas teve como destino Belo Horizonte, em busca de um Chevrolet 1923. O carro estava numa chácara, aparentemente abandonada. Eles resolveram entrar e acabaram tomando um grande susto. "O caseiro saiu atrás de nós disparando uma carabina", afirma Hopf. "Corremos como nunca."
Não foi a única fuga na carreira da dupla enquanto garimpavam carros preciosos. Noutra ocasião, escaparam de um policial à noite na Via Dutra. "Eu estava ao volante de um Cadillac e o Roberto roncava ao meu lado, quando fomos parados por um guarda", diz o advogado. "No instante em que despertou, o Lee tomou os documentos do policial e me mandou acelerar. Fugi com o coração na mão." Foi o próprio Hopf quem acabou indicando ao amigo o Cadillac 1954 que pertencia a Elza Leoneti do Amaral. "Vi o carro guardado numa garagem perto de casa e logo depois liguei ao Roberto, que me pediu para intermediar a negociação", diz. Como fazia em todas as ocasiões, Hopf registrou com sua máquina fotográfica o momento em que Lee tomava posse do carro. Mesmo em estado precário, o acervo deixado por Lee no Museu merece respeito.
Lá está o Alfa Romeo P3 Grand Prix, de 1932, um bólido capaz de atingir mais de 200 km/h e que, nas mãos da corredora francesa Helle Nice, causou em 1936 um acidente que matou oito pessoas numa corrida nas ruas de São Paulo. Depois do desastre, o carro ficou perdido durante algum tempo, até ser localizado pelo relações-públicas Alberto Reis nos fundos de um posto de gasolina em Ouro Preto, no interior de Minas Gerais. "O 'charutinho' vermelho estava em cima de um cavalete e, quando soube que o dono estava disposto a vender, liguei para ele", afirma Alberto. "No dia seguinte, Roberto já estava lá, colocando o Alfa em cima de uma carreta para trazê-lo a São Paulo."
Há apenas dois carros nacionais na frota que restou no Museu de Caçapava. Um deles é um Maverick 1973 amarelo, o primeiro modelo do tipo a rodar por aqui. O outro brasileiro também é uma raridade. Trata-se do Capeta, um protótipo de carro esportivo da Willys apresentado no Salão do Automóvel em 1964. Ele vinha equipado com um motor Aero-Willys de seis cilindros e seu design lembrava um pouco o Interlagos, o primeiro carro esportivo construído no Brasil. As grande paixões de Roberto Lee, os Packard e os Cadillac, estão bem representadas no Museu de Caçapava (veja ficha com o inventário do acervo ao lado).
O mais valioso deles é o Packard One-Twenty, que carregou o príncipe Phillip por São Paulo, tendo como chofer o próprio Roberto Lee. Durante um desfile, o membro da família real britânica espantou-se quando a primeira-dama do estado, Maria do Carmo, mulher do então governador Abreu Sodré, cumprimentou o motorista com um beijo no rosto. Diante do ar de surpresa de Phillip, Maria do Carmo explicou que ela e Lee eram velhos conhecidos.
Depois, na subida do Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, o Packard enguiçou e teve que ser empurrado. Perdidas no Museu de Caçapava, essas máquinas fabulosas podem agora voltar à vida trazendo seu passado glorioso caso o local seja reaberto pela prefeitura de Caçapava, como era o desejo de Lee. Como se estivesse prevendo a tragédia que acabou com sua vida, nove dias antes de ser assassinado pela amante ele encaminhou uma espécie de carta-testamento ao pai. "Procure uma fórmula de manter o museu em funcionamento", anotou, a certa altura da correspondência. "E que ele sobreviva a nós todos".